quarta-feira, 14 de maio de 2014

Geni do Guarujá

Chico Buarque é mais que um músico, letrista ou compositor (e um par de olhos verdes, e aquela voz). Chico Buarque, ao meu ver, é um antropólogo. Desses que conseguem misturar as palavras fáceis às difíceis e nos fazer aumentar o vocabulário. Geralmente falando de política ou de amor. Chico Buarque consegue escrever de maneira feminina tão bem quanto as maiores autoras feministas. Chico Buarque rules.

Chico é filho de acadêmico e manja dos paranauê social e político. Em "Geni e o Zepelim", resumiu todo e qualquer estudo de sociologia das civilizações contemporâneas. A canção do disco "Ópera do Malandro" é de 1978, tempos em que a ditadura açoitava os grandes compositores. E é, sem dúvida, uma das canções mais completas e complexas do baixinho cabeçudo sedutor.

Geni é um travesti promíscuo aos olhos da cidade - um lugar religioso, hipócrita e moralista. Entre rezas e dedos apontados, Geni valia nada. Quem nunca, em qualquer contexto que seja, não se sentiu uma Geni? Joga bosta, feita para apanhar, boa de cuspir. Todos temos um pouco de Geni dentro de nós.

Agora virando a mesa, quem nunca julgou o que o outro merecia? Castigo, vingança, justiça - entre os notíciários, crimes e condenações, somos todos o padre, o prefeito e o bispo. Somos todos o capitão do Zepelim também, opressor, violento - que se lambuzou com a Geni e zarpou.

Mas não estou aqui para falar se a Geni é a oprimida, se a cidade é moralista, se o capitão do Zepelim estava certo. Deixo isso para os acadêmicos, que aliás, entopem estantes de mestrados e doutorados sobre a faixa de Ópera do Malandro.

Em tempos de Sheherazade, a Geni morava no Guarujá. Era casada, mãe de duas filhas, portadora do distúrbio bipolar. A Geni foi linchada, apedrejada, morta. Geni não foi somente oprimida e usada, mas brutalmente assassinada. Foi exposta das maneiras mais vis por tablóides e emissoras. Não teve o privilégio do silêncio da morte com moscas bicheiras pousando em seu corpo esfolado.

A Geni morreu à toa. Morreu por conta de fanáticos - tais como os da música - que não pensaram duas vezes ao enviá-la à desgraça. A Geni não se chama Geni, não era um travesti, não dormiu com o capitão do Zepelim. Ela ofereceu uma fruta a uma criança e condenada por isso. Apedrejada como na Idade Média, como no Oriente Médio, como a Geni de Chico era todos os dias. A Geni era Fabiane Maria de Jesus.

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